quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Manifesto contra a frescurização da cachaça

        Se tem algo que quem não é do mundo do vinho detesta é a frescura com que os supostos entendidos  escolhem suas bebidas. Quer tirar minha paciência é alguém atrasar todo o pedido de comida na mesa do restaurante porque está sabatinando o garçom sobre a melhor safra dos vinhos disponíveis na carta de vinho. E o que falar da patética cena da degustação e aprovação perante o garçom? Estes dias vi um cara na mesa ao lado devolver o vinho porque achou sinais de desgaste na rolha, o que supostamente interferiu no sabor do vinho. Se eu fosse o garçom desgastaria a cara dele, mas deixa pra lá.
           Outra chatice são esses sabores que só os enófilos sentem. Notas de baunilha, bouquet de carvalho, aveludado, amêndoas, banana, etc.. Para mim isso tudo tem aroma de abobrinha. O máximo que sinto são notas de cortiça quando deixo a rolha cair dentro da garrafa. Como caipira, tenho sempre duas opiniões sobre os vinhos: é bom ou é ruim. Queria realmente poder sentir tudo isso em um vinho, deve ser mágico! Os testes cegos são os melhores antídotos contra os enochatos. Eis um aqui um vídeo muito bom:

         Tenho para mim que o vinho ganhou força no Brasil como uma nova fronteira de diferenciação da classe média, que sempre buscou incorporar sinais de sofisticação a todo momento. Decantadores, saca-rolhas mágicos, mini adegas eletrônicas e diferentes tamanhos de copo são parafernálias obrigatórias na casa do casal moderno brasileiro. As pessoas querem se sentir especiais não apenas consumindo um bom vinho (pessoas chatas sempre usam o "bom" na frente de vinho), mas afirmando sentir sensações no paladar que os enólogos garantem que estão naquele determinado vinho. Isso me lembra a fábula "A Nova Roupa do Rei", de Hans Christian Andersen, em que todos diziam enxergar a roupa invisível do rei, que só os inteligentes poderiam ver, para não serem chamadas de burra. Será que alguém um dia gritará no mundo dos vinhos: o Rei está nu?
          Uma das primeiras coisas que minha turma do Rio Branco fez foi se matricular num curso de vinhos. Tudo bem que o vinho sempre estará presente na nossa carreira, mas e a bebida nacional, será que conhecem suficientemente bem?
     O grande mal que a enochatice tem feito é criar um estereótipo que prejudica os verdadeiros apreciadores. Apesar de não entender nada, gosto de vinho, adoro ganhar de presente e tenho muitos amigos que realmente conhecem vinhos e que sabem apreciar as diferentes nuâncias de aroma e sabor, mas que bebem tranquilamente em sua casa ou no restaurante, sem anunciar aos quatro cantos que escolheu aquele vinho porque ele é de tal região ou safra. O mundo do vinho é espetacular e acredito que as pessoas entendidas também devem estar um pouco enfadadas dos enochatos.
       Pois bem, depois de discorrer sobre enochatice e expor meu trauma com vinhos (sempre que devolvo a carta de vinhos recebo um olhar de "humpf, moleque" do garçom ao pedir coca-cola), vamos falar do que interessa: cachaça.
        Geralmente, quando se conversa de cachaça os principais adjetivos utilizados resumem-se a: boa/ruim, amarela/branca e forte/fraca. Às vezes escapa um "macia" aqui, um " braba" acolá, mas nada muito além disso, pois caipira não é de ficar descrevendo muito as coisas não. Acontece que isso tem mudado, infelizmente (pelo menos para mim). Estamos sendo contaminados pela enochatice. Fui ler o Ranking Playboy da Cachaça de 2011, que é hoje a principal lista sobre a bebida no país, e eis as descrições que encontrei para algumas delas:
- "a viscosidade e as notas de baunilha e caramelo agradam"
- "licorosa, com um amargor confortável"
- "tostada, complexa, tem algo de amêndoa"
- "o resultado é algo herbáceo, com predominância de anis e eucalipto"
- "sabor de banana verde, o aroma de Sândalo e o paladar pontual"
- "baunilha, couro, amêndoa caramelada"
- "tem sândalo no aroma e sabor picante"
- "textura licorosa, aroma forte e doce, sabores de caramelo, rapadura e especiarias".
- "doce, leve e com notas de banana verde"
- "doce, amanteigada, licorosa"

        Acho que se eu fosse produtor de cachaça e fizesse meu produto com todo esmero iria ficar muito chateado se alguém falasse que ele tem gosto de banana verde ou rapadura.Vamos imaginar que você cuidou da sua lavoura de cana, do processo de fermentação, da destilação, comprou os melhores barris, contratou técnicos, fez uma garrafa com bela apresentação e conseguiu figurar no ranking das melhores cachaças do Brasil, daí vem um "conhecedor" e diz que ela lembra...Couro!?!?!? Couro????
       Não sei por que as pessoas insistem em achar que beber é brincar de procurar sabor exótico. A própria Playboy não deixou barato e na apresentação da degustadora Bel Coelho, dona das frases, disse que ela tem um paladar e olfato sobre-humanos. Pois é...
          O outro degustador que colaborou com a revista foi Leandro Batista. Esse sim vale a pena conhecer. Seus vídeos no site Mapa da Cachaça são uma aula obrigatória para quem quer conhecer mais sobre o assunto. Para mim, a melhor descrição de cachaça feita nesta edição do ranking foi do Marcelo Tas, sobre a Cachaça MatoDentro: tem "sabor de infância". Simples, mas diz muito.
     


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