Hoje me deu saudade da casa do meu avô e passei o
dia lembrando do que tinha lá.
Quando íamos pra casa do meu vô, em Itajubá,
passávamos por Guaratinguetá, e meus dois irmãos se abraçavam dizendo que só
quem nascia lá poderia se abraçar. Eu sempre chorava, e meu pai me consolava
falando maravilhas da minha cidade e dizendo que São José era bem melhor. Isso
me acalmava e eu parava de chorar. Isso explica muita coisa.
A casa do meu avô ficava bem no começo de
Itajubá, para minha sorte, porque eu sempre passava mal na serra. Depois da
fábrica de armas, passávamos uma campinho de futebol numa praça à esquerda e
pronto, bastava virar no SupergásBras e parar na casa de cerca branca na
esquina da direita.
Era abrir o portão e correr pelo caminho no
jardim para ganhar o primeiro abraço do Zé Braga e da Dona Laura. Meu pai ouvia
o "Fez boa viagem, filho?" - que eu ouço agora quando
chego no aeroporto- e descarregava as malas.
A casa do meu avô quase nunca estava vazia,
sempre havia um parente batendo papo ou esperando nossa chegada.
Para nós, crianças, havia Yakult, Babaloo e Sonho
de Valsa à vontade, mas escondido no móvel de madeira da cozinha.
Logo quando chegávamos, o primeiro programa era
ver a horta que ele mantinha. O forte era a couve, que vendia para quem
passasse na rua, mas havia de tudo. No terreno ao lado da casa, meu vô plantava
as árvores maiores. Hoje, ao ver o sacrifício que minhas mudas fazem para
crescer em frente de casa, entendo o orgulho que meu vô tinha ao mostrar como
estava alto o pé de limão, de banana, de mexerica, etc... O limão era o galego,
o melhor para espremer no feijão com arroz que minha vó fazia. Neste
terreno, uma vez meu vô criou um porco, que chamamos de Zetti. Lembro muito
dele e um dia terei outro porco pra chamar de meu.
Lembro de outras plantas marcantes. No centro do
quintal havia uma palmeira, que continha em seu tronco todos os nomes dos
primos rabiscados. Havia um pé de figo, cujo doce minha mãe adorava. A
parreira, que veio um pouco mais tarde, produzia os cachos de uva mais doces
que já provei. Era parente da parreira que tinha na tia Sirley, minha madrinha,
cuja produção era impressionante.
Na entrada da casa havia um pé de romã e as
roseiras da minha vó. Que delícia comer o romã descascado direto da mão do meu
avô. Lembro que as rosas eram enormes também, talvez porque eu fosse pequeno,
mas a vermelhidão delas era certa. Quando saio pela rua de bicicleta hoje em
dia e me deparo com casas bem simples com esta combinação de pé
de romã e rosas meu cérebro emite um alerta: isto é casa de vó.
Para terminar a parte da horta, havia uma árvore
com uma pedra presa entre os galhos. Aquilo me fascinava. Diziam que ela nunca
sairia de lá. Eu juro que tentei minha infância inteira puxá-la, mas acho que
nem o rei Artur conseguiria.
No espaço em que só havia grama, podíamos jogar
bola. Eu, irmão mais novo, era sempre o goleiro. Fui Zetti e Veloso no quintal
do meu avô. Jogávamos também no portão da distribuidora de gás, mas o barulho
era demais pra quem estava lá dentro trabalhando.
Quando a grama estava alta, meu avô abria o
portão e um cavalo fazia as vezes de jardineiro. Era fascinante aquele
animalzão dentro do quintal do meu avô. Combinava com minha camiseta de
cavalinhos da foto.
O café da tarde era sempre cheio de gente e
podíamos rever os tios e primos de longe. Café doce e biscoito de polvilho. A
coca-cola era de vidro e bem gelada. Depois dos salgados, meu avô descascava
cana pra gente. Quando queríamos sorvete, ele arranjava um pote escondido no
quartinho e ia buscar na sorveteria perto da rodovia. Até hoje peço sorvete de
chiclete nos lugares por causa daquele sorvete que tinha perto da
rodovia.
Na casa do meu avô tinha um corredor, com aquela
tradicional foto antiga de casal, com ele e minha vó. Eu dormia no último
quarto com meus pais. Meu vô acendia um abajur no chão perto da porta para não
dormirmos no escuro. No frio, minha vó punha tanta coberta em cima da gente que
quase não dava pra virar na cama, mas era uma delícia dormir naquele frio de
Itajubá. A gente dormia depois de comer a sopa da minha vó e de assistir ao
jornal nacional, que meu vô via de boné porque a luz da sala atrapalhava. Minha
vó beijava o retrato da minha bisavó e ia dormir. Às 6h eles já estavam de pé.
Na casa no meu avô tinha cadeiras na varanda pra
ver o movimento da rua. Meu vô me punha no colo e cantava "Serra Serra
Serrador" e eu segurava forte na mão dele para não cair no chão quando ele
me balançava. Foi nessa cadeira que ouvi pela primeira vez, talvez com uns 10
anos de idade, que eu seria diplomata. Foi meu pai falando pro meu tio Elpídio.
Lembro como ontem.
De um lado da cadeira havia um rádio velho que
pegava estações do mundo todo, mas o que tocava mais era moda de viola, que
aprendi a gostar desde essa época da vida. Do outro lado, uma bicicleta do tipo
camelo que meu vô usava pra ir à feira. Na parede, passarinhos por todos os
lados, a sua grande paixão. Na casa do meu vô, pintassilgo era o rei e os
pardais, o diabo. Meu vô tinha uma arapuca para apanhar rolinhas para nós
vermos de perto.
A parte mais legal da casa, para mim, era o
quartinho onde meu vô "tratava dos passarinhos". Acho que nunca vi
minha vó lá dentro. Era um quartinho masculino, com ferramentas, gaiolas, ração
pra pássaros, fumo de rolo e pinga. Era lá que ele preparava seu cigarro de
palha e tomava uma dose de pinga. Como eu era criança, eu só podia cheirar a
pinga. Quem experimentou afirma que havia uma pinga inigualável, cuja única
identificação era a palavra "amarela" escrita num pequeno adesivo.
Tinha dia que meu vô levava meus irmãos e meus
primos para passear no morro e contava história de terror. Eu não podia ir, mas
sempre soube que eram das mais amedrontadoras.
Meu avô, já com mais idade, batia papo com
conhecidos na rua e depois perguntava para minha vó: “Qual é esse com quem
conversei agora, Laura?”
Meu avô mostrava as veias da mão e dizia que seu sangue era azul, porque era descendente da realeza. Como era azul mesmo, eu acreditava. Dos pais do meu avô eu sei pouco, só que eram da roça em Brasópolis-MG. Nunca tive
muita curiosidade de pesquisar. Talvez porque um dia, quando fui com meu vô
cortar cabelo no nosso primo Geraldinho, que era fissurado pela genealogia da
família e não parava de fazer perguntas sobre isso, meu vô disse:
- Ô Geraldinho, nós somos todos índios, agora
corta esse cabelo logo!
Hoje, perto da casa do meu vô, há uma rua com nome dele, mas o que importa é que, no fundo, sempre seremos índios, pois a nobreza ele nos mostrou que vem do coração.